Perfume de manjericão
A vida diária na
cidade grande é quase sempre uma
armadilha
A vida diária na cidade grande é mais
que um desafio para quem tem o sagrado
dever de produzir esta coluna mensal. É
quase uma armadilha. São tantas, tão
variadas e agressivas as ocorrências
diárias despejadas em nossos olhos e
ouvidos pelos veículos de comunicação
que quase perdemos o ânimo para
transmitir algo diferente, para abrir
uma trégua, uma humilde fresta no
matagal das novidades que dão manchetes.
E é assim que o homem vai morrendo aos
poucos. Corrompe a audição, entupida de
ruídos que ferem os ouvidos, afeta a
visão grudada no escravismo dos
ponteiros que o arrastam para o próximo
compromisso, entorpece o tato afeito
agora à aspereza do forçado contato com
terceiros. E que dizer do gosto, afetado
por artificialismos que o transformam
num zumbi, prisioneiro de mil sabores? E
o olfato, perdido de si próprio,
sequestrado por atrevidos odores das
ruas?
Penso na família de tio João Manuel, que
morava vários quilômetros distante da
casa onde me criei, em um sítio nos
confins do Noroeste gaúcho.
João Manuel era um tipo arredio. Pouco
nos visitava e pouco íamos à sua casa.
Eu era pequeno, não teria mais que sete
ou oito anos, e ia grudado no dócil
cavalo baio enquanto minha prima Noêmia
seguia ao lado, a pé. Geralmente
combinávamos visitar o tio quando íamos
levar trigo ou milho em grão para
transformá-lo em farinha no incrível e
imenso moinho próximo de sua casa e
movido pela força da água.
Chefe de numerosa família, os filhos de
tio João Manuel viviam isolados de
parentes e vizinhos e cresciam ao ritmo
da chuva, do vento na copa das árvores,
das águas inquietas do córrego
cristalino e a sinfonia de latidos,
berros, guinchos, relinchos, zumbidos,
cantos e chilreios que povoavam de vida
pátio, lavouras e matas.
Talvez esse convívio íntimo e único com
a natureza tenha moldado aquele jeito
incrivelmente paciente, infinitamente
bom e puro de toda a família. Eu me
sentia amado e querido naquele mundo
distante, selvagem, de meus tios e seus
filhos. Selvagem, sim, mas permeado de
uma finura que só legítimos filhos da
natureza saberiam expressar.
Lembro-me da prima Lúcia, uma das filhas
“do meio”, colhendo na beira da casa
perfumadas folhas de manjericão e
colocando-as, com infinito carinho,
atrás de minhas orelhas. Decorridas
tantas dezenas de anos não posso ver
essa planta ou sentir-lhe o perfume sem
lembrar-me de Lúcia e seu toque amoroso
que perfumou para sempre minha vida.
Bem, chega de sonho. É preciso voltar à
vida moderna e dividir com 10 milhões de
“vizinhos” a fumaça, o ruído e os
estranhos odores e sabores da cidade
grande.
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